Religiosidade e fé
A religiosidade oferece a Deus algo que Ele não pede, mesmo que seja
muito vistoso, mas a fé caminha na simplicidade da obediência.
A religião primitiva baseava-se desde a noite dos tempos na ideia do
sacrifício, a fim de aplacar a ira dos deuses, por parte dos humanos que não
controlavam as forças na natureza nem as conseguiam compreender em termos
naturais.
No Livro de Génesis, capítulo 4 lemos sobre os sacrifícios
apresentados por Caim e Abel a Deus.
Esse episódio
ajuda-nos a entender a diferença entre religiosidade e fé. De certo modo
podemos dizer que Caim tipifica a religiosidade e Abel tipifica a fé, ou a
espiritualidade cristã.
As diferenças
são várias e fundamentais:
O texto diz que Abel sacrificou um animal do seu rebanho, mas Caim
limitou-se a trazer dos frutos da terra sem derramamento de sangue, sem
sacrifício. Mais tarde Deus declara:
“E quase todas as coisas, segundo a lei, se purificam com sangue;
e sem derramamento de sangue não há remissão” (Hebreus 9:22).
A religiosidade oferece a Deus algo que não tem vida em si mesmo,
mas a fé oferece a vida
A religião de hoje oferece o
corpo (sacrifícios corporais) ou dinheiro, ou velas, ou promessas, mas o que Deus
requer é que nos ofereçamos a nós mesmos a Deus, porque o sacrifício de sangue
tem o sentido de representar um sacrifício substituinte e aponta profeticamente
para Jesus que, como João Baptista anunciou, é o cordeiro de Deus que tira o pecado
do mundo.
A religiosidade oferece a Deus algo que Ele não pede, mesmo que
seja muito vistoso, mas a fé caminha na simplicidade da obediência
“Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres
bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves
dominar” (7a).
O altar de Caim
era muito mais vistoso do que o de Abel, cheio de flores e frutos coloridos e
apetecíveis, mas não era isso que Deus tinha pedido.
“E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a
mim desde a terra” (10).
Flores de
frutos não interpelam Deus, mas o sangue (que representa a vida) sim.
A religiosidade suscita em nós sentimentos negativos, mas a fé é
humilde
Caim, ao ver
rejeitada por Deus a sua oferenda, ficou zangado: “Mas
para Caim e para a sua oferta não atentou. E irou-se Caim fortemente, e
descaiu-lhe o semblante” (5).
“Nada façais por contenda ou por vanglória, mas por humildade;
cada um considere os outros superiores a si mesmo. Não atente cada um para o
que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos outros. De sorte
que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus” (Filipenses 2:3-5).
A religiosidade suscita em nós a destruição do que é diferente,
mas a fé ama
“Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu
inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos
maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos
perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus” (Mateus
5:43,44).
Apesar de tudo Caim e Abel eram irmãos
Um caminhou na religiosidade, outro na espiritualidade. Ambos
queriam ser aceites por Deus, mas apenas um o foi. Mas nada justificaria que um
destruísse o outro. Se nada justifica o racismo e a xenofobia, ainda menos se
podem justificar as guerras religiosas ou conflitos entre religiões. Caim e
Abel representam assim diferentes formas de procurar a aceitação e aprovação
divinas.
Resta saber se
a nossa abordagem ao transcendente se faz em obediência à revelação que temos
de Deus (como aconteceu com Abel) ou se preferimos construir uma religiosidade
que não o toca (como sucedeu com Caim).
José Brissos-Lino
- Nasceu em Lisboa (1954), é casado, tem dois filhos e um neto.
Doutorado em Psicologia, Especialista em Ética e em Ciência das Religiões, é
director do Mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona, em
Lisboa, coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo e investigador.
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