Atitude de servo
Daniel Lima
Há vários anos tivemos no Brasil dois eventos que
revelam muito da natureza humana. Em 2004, um juiz de direito entrou com um
processo contra um porteiro de seu condomínio por este dirigir-se a ele como
“você” e “cara” e não como “senhor” e “doutor”. O evento ocorreu após uma
discussão típica de condomínio, tratando de um vazamento no apartamento do
magistrado. Na época, ele pedia uma indenização por danos morais de cem
salários-mínimos. O mais surpreendente é que na primeira instância o juiz teve
ganho de causa[1].
Em outro evento, também revelador, um juiz foi
parado em uma blitz dirigindo sem carteira um veículo sem placa e sem
documentação. De acordo com a legislação, o veículo teria de ser apreendido e o
condutor multado. No entanto, o juiz dirigiu-se ao comandante da operação e,
explicando que era juiz, pediu para ser liberado. A agente que o havia autuado
manteve sua posição. Na discussão a seguir, o juiz lhe deu ordem de prisão por
desacato e a agente disse: “É juiz, mas não é Deus”. Mais tarde, a agente
entrou com um processo contra o juiz por se sentir ofendida durante o exercício
de sua função. No processo decorrente, a justiça considerou que a vítima era o
juiz e condenou a agente a pagar uma indenização de cinco mil reais. A agente
foi eventualmente isentada de pagar a indenização após seis anos da condenação[2].
Em ambos os casos, ainda que seja levada em
consideração a posição e a dignidade da função dos magistrados, os dois não
estavam no exercício da função, ou seja, a função e mesmo a pessoa dos
magistrados não foi ofendida. É bem possível que tanto o porteiro como a agente
tenham sido debochados ou desrespeitosos no modo de falar, mas como ficou
evidenciado em ambos os casos após um longo processo jurídico, deboche não é
crime, ou seja: nenhuma lei foi quebrada. O que foi ferido foi a sensação de
identidade desses dois senhores. Para eles, pelo fato de serem juízes
devidamente concursados, sua identidade está vinculada à sua pessoa e não à
função ou cargo que exerciam.
Temos visto nos últimos artigos (“Reino de cabeça pra baixo”, “A quem servimos” e “Como servimos”) vários aspectos sobre
serviço cristão. Jesus demonstra com clareza no evento do lava-pés que,
justamente por saber quem era e por saber de onde vinha, podia abrir mão da
glória que lhe era legitimamente devida. Como seguidores do Mestre, somos
chamados a servir sem que isso fira em qualquer medida nossa identidade. Hoje
gostaria de examinar com vocês a conhecida passagem de Filipenses 2.5-8:
“Seja
a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não
considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas
esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens.
E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até
a morte, e morte de cruz!”
A primeira observação é a
exortação de Paulo para que copiemos a mesma atitude de Cristo. A palavra para
“atitude” poderia ser traduzida por “mente” ou “sentimento”. No entanto, o
sentido do verso permitiria também traduzir por “perspectiva” ou “entendimento”.
Ter a mesma atitude de Jesus refere-se ao modo como encaramos a vida, nossas
prioridades e mesmo como encaramos nosso papel nos vários relacionamentos em
que estamos envolvidos. Paulo está nos chamando a copiar a própria vida de
Cristo.
A partir do verso 6, entramos em um
debate que dividiu a cristandade por anos. O dilema é se Jesus, tendo se
esvaziado, deixou de alguma forma sua natureza divina. A melhor forma de
entender essa questão é lembrar que há duas palavras que podem ser traduzidas
como “forma” nessa passagem. A primeira é morfe e a outra é esquema. Morfe,
raiz de palavras em português como transformar, deve ser entendida como “forma
essencial”. A palavra esquema, muito usada no
português, deve ser entendida como “condição”. A partir desse entendimento
podemos afirmar que Jesus manteve sua essência divina, mas abriu mão das
condições de glória em que sempre existiu. Em resumo, ele não perdeu nada de
sua natureza divina e habitou plenamente na condição humana.
Usando essa compreensão, o
restante do texto se torna claro e nos traz inúmeras aplicações como discípulos
de Cristo. No verso 6, lemos que, apesar de ser essencialmente divino, ele não
considerou que precisava manter as condições de glória de sua divindade. Ou
seja, a mudança das condições não afetava sua identidade. Como cristãos, nossa
identidade não é afetada por existir em condições diferentes ou que
aparentemente até neguem minha identidade. Por exemplo, se não sou tratado com
a dignidade que todo filho de Deus merece, não preciso me defender ou
contra-atacar. Condições não determinam quem somos.
Como
cristãos, nossa identidade não é afetada por existir em condições diferentes ou
que aparentemente até neguem minha identidade.
Acredito que, quanto mais
refletirmos nesse exemplo de Cristo, mas livres seremos para servir, mesmo
quando não reconhecidos. Nosso serviço é manifestação de nossa identidade, não
da forma como sou ou serei tratado. Minha oração é que tanto eu como você, meu
irmão e minha irmã, tenhamos tanta clareza de quem somos em Cristo, que ao
sermos tratados neste mundo como servos, nossa reação seja graciosa.
Fonte: https://www.chamada.com.br/
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